paris à go-go

crônicas sobre Paris e de sua ululante gente francesa

mardi, septembre 26, 2006

Le Marais



o Marais é um dos quartiers mais interessantes e branchés, como se diz em francês, eu adoro. a sua história, cheia de altos e baixos, o torna ainda mais instigante: nasceu como um pântano (como o próprio nome diz), serviu para reis e nobres que ali moraram suntuosamente, dividiu sua riqueza com os miseráveis que chegaram apos o declínio do quartier - aquela cantiga de roda “eu sou pobre-pobre-pobre de marré-marré-marré”, vem deste Marais, que obedecendo à Roda da Fortuna voltou a ser très chic. é um centro de butiques legais e modernas, restaurantes e bistrots deliciosos, com população gay crescente. na rue Sainte Croix de la Bretonnerie, o Marais tem uma livraria especializada em literatura e arte GLS com títulos imperdíveis! ao lado da livraria fica um brechó com coisas ótimas, não muito baratas, mas vale a pena fuçar naquela toca minúscula com roupas de todos os estilos. na esquina, do outro lado da rua, fica a sorveteria italiana com parfums divinos e que mudam a cada estação. o meu roteiro da alegria é sempre o mesmo: brechó-livraria-sorveteria! se bem que, na rue Pavée, também tem uma super livraria, na verdade um galpão de dois andares com um acervo gigante de livros novos e usados com os menores preços de Paris, é um terror pisar por lá!

às margens do Sena, no século XII, os donos desta região pantanosa eram monges e templários. dois séculos mais tarde, Carlos V (1338-1380), construiu uma fortificação que desafogou o norte do quartier, seguindo os atuais boulevards Beaumarchais, Filles du Calvaire e du Temple. a fortificação era, ao mesmo tempo, muralha e dique contra o Sena e as terras que emergiram se tornaram espaços livres para se construir: primeiro a mansão Saint-Pol e depois a mansão des Tournelles, ao norte da atual rue Saint-Antoine. lá, residiriam vários reis até a posse de Henri III. foi a primeira fase áurea do quartier.

mas a admiração pelo Marais não foi constante. o quartier, julgado como pequeno e muito escuro para os sensíveis olhos onipotentes de Luis XIV, seria esquecido pela esnobe realeza. a arquitetura da época adotava as vastas perspectivas, a luminosidade e a simetria. Versailles se torna, então, o centro de atração da realeza em detrimento da antiga Paris. sob o domínio de Luis XIV, a nobreza abandona definitivamente o Marais e se muda para os faubourgs Saint-Honoré e Saint-Germain, luxuosos até os nossos dias!

o Marais volta a ser importante no início do século XVII, ao mesmo tempo um centro de elegância, cultura e de festividades. isso favoreceu a construção de numerosas mansões particulares, um dos atrativos permanentes do quartier. os principais entre eles são, atualmente, o museu Carnavalet (que abriga o acervo sobre a Revolução Francesa), o Hotel de Sens e o Hotel de Rohan.

de um refinamento marcante, a decoração interior destas mansões retraça a evolução dos estilos através dos séculos: do renascentista ao estilo Luis XVI, putres e traves pintadas sob Henri IV, as falsas perspectivas de Luis III, lambris decorados ao estilo Luis XIV, a arte rococó de Luis XV. preservadas por milagre depois de 4 séculos, estes tesouros arquitetônicos nos dão uma idéia clara sobre o estilo de vida levado pela altíssima sociedade parisiense.

o abandono do Marais pela corte, que se mudou para os espaçosos e luminosos castelos do Vale de La Loire e posteriormente Versailles, foram paulatinamente devolvendo-o ao povo, aos artesãos e especialmente aos imigrantes judeus da Alsácia e Lorena, que se reagruparam a partir do século XVIII em função dos baixos aluguéis e da proximidade do mercado do Templo. Em 1808, o quartier assumia 82% da população judia de Paris: ateliers de artesãos, lojas e armazéns tomam as mansões particulares já degradadas, onde também se aglomera uma população cada vez mais empobrecida.

entre 1880 e 1939, cerca de 110 mil judeus, que só falavam em ídiche, desembarcaram na Gare du Nord. originários da Polônia, Lituânia, Ucrânia, Rússia e Bielo-Rússia, principalmente, muitos deles se dirigiram para o Pletzl. a rue des Rosiers, uma das mais famosas do quartier e símbolo da comunidade judia, se encontra no coração do Pletzl (“pequeno lugar” em ídiche). o nome da rua, surgida no século XIII, vem das delicadas rosas que pendiam dos muros da fortaleza erigida por Felipe Augusto. por esta época havia uma sinagoga, construída sob a jurisdição dos Templários.

o Marais foi refúgio para os judeus desde a Idade Média. uma lenda macabra nos relata: corria o ano de 1290, o dia era de Páscoa. conta-se que um vendedor de roupas judeu, tomado por fúria incontrolável por não ter recebido o seu pagamento, desfere com golpe de faca a hóstia deixada como caução por uma fervorosa devota. dizem que a frágil hóstia começou a sangrar como um pedaço de carne fresca para desespero de toda a comunidade cristã do Marais. os sórdidos cristãos, totalmente destemperados, carregam o imprudente judeu que teria apunhalado o "coração de Jesus" e o queimam vivo em frente ao Hôtel de Ville (prédio da prefeitura de Paris colado ao Marais).

descrita em numerosas obras literárias e carregada de eventos trágicos, em particular os anos negros da ocupação alemã, durante a 2ª Guerra Mundial, que praticamente dizimou os judeus locais, a rue des Rosiers atualmente se dedica ao comércio onde restaurantes, boulangeries, livrarias e butiques de luxo dividem os caros quarteirões. aliás, bem caros: estes muros já foram cobertos por flores e riquezas, mas também por muito sangue.