paris à go-go

crônicas sobre Paris e de sua ululante gente francesa

samedi, mars 17, 2007

un verre de sang, s’il vous plaît!





tudo se transforma… pensar que a Cité des Sciences et de l’Industrie tomou o lugar do que um dia foi o grande abatedouro de Paris soa estranho para quem visita La Villette, mas é bem verdade... o complexo, no extremo norte de Paris, abrange um belo e grandioso parque, diversos espaços reservados à espetáculos e exposições, cinema com tela hemisférica, restaurantes e hotéis. também é verdade que Paris teve uma vida problemática com os seus açougues desde à Idade Média.

no início do século XII, o grande açougue da cidade servia os seus clientes na rive droite do Sena, perto do Châtelet - e era o lugar mais fétido de Paris! e essa situação se estendeu até "antes de ontem", início do século XIX. imaginar que andar por este quartier significava ouvir os animais agonizantes e mesmo sentir os últimos tremores das patas que se debatiam nervosas nas ruas sem esgoto e tingidas diariamente pelo sangue, nos dá uma noção do pesadelo. quem mudou este quadro foi Napoleão Bonaparte, que um dia acordou e se viu sem guerra para vencer. naquele marasmo crônico decidiu botar fim nesta anarquia e ordenou a construção de 5 abatedouros na capital, todos já destruídos.

era uma época em que a arte de matar progridia lentamente. enquanto que os grandes massacres diários de animais que abasteceriam as mesas parisienses se praticavam ainda com os inquisidores métodos da Idade Média, o vampirismo estava na ordem de casos isolados e patológicos, a antropofagia se tornava completamente vergonhosa e inconfessável, a arte de matar os homens em massa, sem intenção "alimentar ou terapéutica", se aperfeiçoava rapidamente nos campos de guerra. E Napoleão era profundo conhecedor do métier.

em 1847, se autoriza a criação de um abatedouro modesto em La Villette, uma pequena comunidade satélite da capital. após ser anexada à Grande Paris, o estabelecimento cresceu e se tornou um grande mercado de animais, batizado em 1867 com o imponente nome de "Abatedouros Gerais de La Villette". era nada mais que uma aglomeração de pequenos abatedouros individuais aos quais vieram se juntar outros estábulos, pequenos laboratórios, farmacêuticos e outros profissionais do ramo que utilizavam como matéria prima o sangue e as vísceras dos animais.

concessão ao progresso, a pistola à ar comprimido substituiu o porrete que aniquilava os animais. degolados e sangrando, eles eram arrastados para tanques de água quente para a retirada do couro e lavagem. cada um dos tanques não parecia nem mais nem menos equipado que o abatedouro individual de um açougue do campo. tripas, barrigas abertas transbordantes, sujeira, tudo isso se acumulava nos pequenos corredores. nos tanques dispostos lado a lado, se sucediam os mesmos soluços, os mesmos rios de sangue, de dejetos, a mesma falta de higiêne. na antiga rotina de La Villette, as carcarças dos animais mal e porcamente envoltas em sacos, repousavam sobre a calçada - não por muito tempo. para o disputado banquete competiam ratos, cachorros, mendigos e toda a sorte de miséria.

no fim do século passado, anémicos e cloróticos (mulheres, em sua grande maioria), faziam fila todos os dias em La Villette, com receitas médicas ou não, a fim de beber um bom copo de sangue retirado dos animais sacrificados. assim elas esperavam recobrar as maçãs rosadas, os lábios flamejantes, a cor sadia, a vontade de viver. mas o sangue desses animais poderia realmente devolver o viço perdido? na Roma pagã, os doentes bebiam o sangue dos gladiadores que sucumbiam ao combate. se considerava como o meio mais eficaz "receber" o sangue ainda quente, fervendo, esguichando das veias ou das feridas do lutador. retomar assim, da fenda dilacerada, o sopro da vida.

mas nas filas de La Villette o propósito era outro. adeptos do vampirismo e da antropofagia improvisavam para conter a vontade de vítimas, digamos, sem-couro. o que dizer das cloróticas? a medicina assim nomeava as mulheres que sofriam de irregularidades menstruais, irritabilidade, constipação, debilidade e cansaço crônico. o aspecto esverdeado da pele as batizou de cloróticas. é preciso reconhecer que se jogar sobre a ferida de um gladiador expirando tinha uma outra intenção que beber um copo de sangue de animal estendido por um açougueiro. os franceses viviam em plena decadência…



o extenso gramado de La Villette já está verde e as flores do outro lado do parque não esperaram a primavera para colorir o campo, apesar da neve que se anuncia para terça. por mais que o céu seja eternamente inconstante e a vida nos pareça ser sempre a mesma ladainha, quem na fila do sangue fresco poderia vislumbrar este novo horizonte?