paris à go-go

crônicas sobre Paris e de sua ululante gente francesa

lundi, octobre 23, 2006

Santos=Dumont, um Gênio Alado

Se teve algum brasileiro que abalou Paris de verdade, este foi Alberto Santos=Dumont, não há dúvida! Durante o tempo em que viveu aqui, ele fez e aconteceu com as suas diversas experiências aéreas mais que mirabolantes, conquistou todas as classes sociais com a sua “loucura”, simpatia e delicadeza, foi aclamado como herói! Não era pra menos, ele realmente foi o máximo! E assinava com o sinal de igual entre os seus sobrenomes para indicar que as suas ascendências (brasileira + francesa + portuguesa) eram igualmente importantes. Foi um patriota fervoroso.

O bebê Alberto aterrissou no mundo em 20 de julho de1873. O seu berço ficava numa pequena fazenda chamada “Cabangu”, em Minas Gerais, e ele foi o sexto filho dos oito que tiveram Henrique Dumont e Francisca Santos. O pai, filho de imigrantes franceses, formou-se em Paris antes de iniciar a carreira profissional no Brasil, como engenheiro de obras públicas. A mãe era neta de portugueses e filha do comendador Francisco de Paula Santos, dono de terras de extração de ouro, na região de Mariana.

Desde cedo, o petit Alberto engendrou uma relação íntima com máquinas e motores, ele queria saber tudo, adorava saber como funcionavam. Depois que o seu pai terminou a construção da estrada de ferro, em Minas, a família se mudou para a fazenda do avô, em Valença, norte do Rio de Janeiro. Lá, ele conheceu toda a maquinaria de beneficiamento do café e ruminou suas primeiras idéias. Aos 12 anos, totalmente dono de si, teve autorização do pai para dirigir locomotivas. Era um pré-adolescente prodígio!

A partir de 1888, já adolescente e talvez com algumas espinhas, consumia Júlio Verne com voracidade: “A Volta ao Mundo em 80 Dias”, “Vinte Mil Léguas Submarinas”, “A Ilha de Hélice”, “A Casa a Vapor”. Em seu livro “O Que Eu Vi, O Que Nós Veremos”*, Alberto conta que as suas primeiras lições de aeronáutica foram com Julio Verne, a quem chamou de “vidente da locomoção aérea e submarina”.

Em 1891, numa exposição de máquinas que visitou com o pai, no Palais de l'Industrie, ficou maravilhado ao ver pela primeira vez um motor à petróleo (este era Santos=Dumont!!!), e achou que poderia tornar reais as fantasias de Julio Verne. Entusiasmado, pediu ao pai que o deixasse estudar em Paris. Naquela mesma noite, durante o jantar com a família francesa, o pai informava que Alberto retornaria para fazer os seus estudos. Então ele correu por Paris e comprou todos os livros que encontrou sobre balões e viagens aéreas.

Dias depois, numa típica manhã de garoa, em São Paulo, seu pai o levou até um cartório e, sem dizer nada, o emancipou. Tinha 18 anos. No escritório de casa, mirou fundo nos olhos penetrantes de Alberto e disse seriamente: “Já lhe dei a liberdade, aqui está o capital”, e entregou vários títulos de grande valor. Tossiu um pouco, tinha a garganta arranhada, e completou: “Estude com os especialistas de Física, Química, Mecânica, Eletricidade e não esqueça que o futuro do mundo está na Mecânica. Você não precisa pensar em ganhar a vida; eu lhe deixarei o necessário para viver…”.

E foi assim que Alberto partiu do Brasil. Em Paris, estudou e viajou durante alguns anos. Trabalhava com afinco, mas em segredo, não tinha coragem de colocar em prática as suas idéias, elas deveriam ser estranhas demais até para ele, hehe. Estava no Rio de Janeiro e contemplava o infinito quando chegou em suas mãos um livro do construtor Lachambre. Ele descrevia o balão utilizado numa expedição para o Pólo Norte, em 1897. Com o coração aos sobressaltos Alberto decidiu: era o momento de retornar à Paris!

A primeira coisa que fez foi procurar por alguém que fizesse um passeio de balão com ele. Lá em cima, ficou em êxtase com a cidade coberta pela neve e diz que compreendeu perfeitamente todas as manobras do piloto, era como se ele realmente tivesse nascido para a aeronáutica - enfim, Santos=Dumont se descobria! Conversando com o piloto, demonstrou sua vontade de construir um pequeno balão; teve como resposta que poderia ter seda japonesa de peso insignificante. Assim nasceu o “Brasil”, um balão de apenas 100 metros cúbicos, quando o normal era de 250! Alberto já começava arrasando! Vaidoso, ele conta que o “Brasil” era lindo na sua extrema transparência e que os parisienses ficaram encantados com a grande bola de sabão que flutuava sobre a cidade. Alguém duvida?

Um dia, acordou mais animado do que de costume e saiu para comprar um triciclo à petróleo. Foi até o Bois de Boulogne, pendurou-o por 3 cordas num galho e o suspendou do chão. Pulou feito criança quando se deu conta que o triciclo suspenso vibrava suavemente, o que não acontecia em terra firme. Correu para o Automovel Club, ainda não existia o Aero Club, e falou ofegante que pretendia subir ao céu levando um motor sob um balão. Disseram que se ele quisesse se matar, o melhor seria sentar num barril de pólvora, HAHAHAHAHA! Era uma gente pequena e sem visão!

Suas experiências aéreas começaram no final de 1898. Conta que, para ele, foram muito interessantes, principalmente pelo fato de ver um motor trepidando e roncando nos ares. Alberto acreditava que foram estas suas experiências que impulsionaram a fundação do Aero Club da França, o primeiro do mundo, no que ele tem toda a razão.

Então construiu um balão ovóide e sofreu uma queda terrível, de centenas de metros, achou que havia chegado a sua hora. Mas não desistiu e com este balão, o Nº3, atravessou novamente Paris. Com isto iniciou-se uma discussão de como seria possível ir, com um balão, de um ponto a outro e voltar ao de partida. Corria o ano de 1901 e o Prêmio Deutsch, oferecido por um senhor milionário, tímido e simpático, Deutsch de La Meurthe, foi lançado: 100 mil francos seriam entregues ao primeiro aeronauta que nos próximos 5 anos partisse de St. Cloud, circum-navegasse a Torre Eiffel e voltasse ao ponto de partida em menos de 30 minutos. Alberto não disse nada, mas sabia que o prêmio era dele, tanto que no dia seguinte iniciou a construção do balão Nº4 e também de um hangar, o primeiro do mundo, em St. Cloud.

Dessa vez optava por um balão fusiforme e comprava o motor de maior potência e o mais leve da época: 9 cavalos e 100 quilos… Sim, a vida era áspera para um inventor naqueles anos, mas, o golpe de sorte, era que o único concorrente de Santos=Dumont nunca conseguia fazer o seu balão subir. E assim nosso gênio embolsava os juros do Prêmio Deutsch!

Na calada da noite de 12 de julho de 1901, quando todos os parisienses dormiam e sonhavam que a França era o centro do universo, Alberto levava o seu Nº5 para o hipódromo de Longchamps. No alto, começou a fazer pequenos círculos com o dirigível sobre o bairro de Puteaux. Voava leve e solto quando todas as usinas acionaram seus apitos e sirenes, foi um pandemónio! Pousa em Longchamps e, movido pela emoção, diz aos amigos e mecânicos que o acompanhavam na aventura, que queria porque queria ir até a Torre Eiffel. A princípio não gostaram muito da idéia, mas são convencidos pelo espírito desbravador de Santos=Dumont - era incrível, ninguém mais conseguia segurar aquele homem, HAHAHAHA! O problema foi que ele perdeu o controle do dirigível perto de Trocadero, mas conseguiu aterrissar no jardim. Resolvido o contratempo, parte de novo, dá a volta na Torre e retorna à Longchamps. Naquele mesmo dia a imprensa anunciava ao mundo que estava resolvido o problema da dirigibilidade dos balões. Santos=Dumont triunfava!

Também neste dia, provavelmente alguma conjunção bastante favorável em seu mapa astral, começava a sua grande popularidade em Paris, ele se tornava um super-star, a celebridade dos balões! Alberto conta em seu livro, que os constantes aplausos que recebia davam força a ele e seus companheiros a continuar a luta contra tantos insucessos e perigos. Nesta saraivada de felicitações, conta que o cartão que mais o emocionou foi o que recebeu de Thomas Edison, para ele o maior inventor daqueles “tempos modernos”. Na mensagem Edison o chamava de “Bandeirante dos Ares”.

Naquela noite Alberto comemorou, se esbaldou, brindou e tomou várias taças de champagne, comeu caviar, beliscou macarons, e algumas horas depois, exatamente às 6h41, ele voava novamente ao lado da Torre. Era o dia 13 de julho. Toda a Comissão Científica do Aero Club estava presente e desenhava cada movimento em seus moleskines. O vento, enciumado da fama de Santos=Dumont, o joga em cima das árvores do verdejante parque do Barão de Rotschild. A decepção é geral! O pior é que o balão deveria ser desmontado com o máximo de cuidado, porque era com ele que Alberto pretendia ganhar os 100 mil francos. Persistente, apesar do cansaço, firme, apesar da fome atroz que o abatia, Alberto seguiu em frente entoando o seu ditado preferido: “quem quer vai, quem não quer manda!”. Lá pelas tantas, teve uma agradável surpresa: Princesa Isabel, vizinha do Barão de Rotschild, mandava entregar uma deliciosa cesta de lanche. Junto, um bilhete em que dizia saber que ele estava trabalhando por horas a fio, e que imaginava as angústias que a sua mãe deveria sofrer ao seguir de tão longe as peripécias do filho. A Princesa o presenteva com uma pequena medalha e esperava que, assim, sua mãe ficasse reconfortada, sabendo que ele a traria consigo sempre que subisse aos céus. Alberto nunca mais abandonou a medalha.

Quando este balão é colocado novamente no ar, outro acidente! Após circum-navegar a Torre, a máquina sofre uma pane e toca o telhado de uma casa. Alberto ficou desconsolado, o balão estava totalmente destruído e não sobrara um pedaço maior que de um guardanapo! Pra piorar tudo, ele ficou dependurado por algumas cordas em posição perigosa e se salva por milagre com a ajuda dos bombeiros (quiça da medalha da Princesa, hehe). Neste dia é desencorajado a continuar por amigos e jornalistas, mas ele diz que jamais conseguiria contrariar o seu temperamento de, nas palavras dele, “sportsman”. Felizmente, para a humanidade, Santos=Dumont era um osso duro de roer!

Começa a construção de um outro balão, o Nº6. Em 3 semanas ele teria que estar pronto! Como o nome de Alberto era “trabalho intenso-duro-incansável”, isso foi possível. Então ele sobrevôou novamente a Torre, a uma altura de 250 metros, acima de uma enorme multidão que gritava, aplaudia histérica e acenava com lenços e chapéus jogados para o alto. Depois de apenas 2 anos da criação do Prêmio Deutsch, Santos=Dumont finalmente o arrebatava! E distribuiu os francos assim: 50 mil para os mecânicos e operários das usinas que o ajudavam e o restante, aproximadamente 80 mil francos, para cerca de 4 mil parisienses pobres, distribuídos, a seu pedido, em donativos de 20 francos. Era uma alma caridosa além de tudo!

Nesta ocasião, o então Presidente da República, Campos Salles, lhe enviou uma medalha de ouro e um grande prêmio em dinheiro, oferecido pelo Congresso Nacional. O Aero Club e o Instituto da França também lhe condecoraram. Alberto continuava na luta, ainda não tinha chegado ao seu objetivo.

Depois do Nº6 construiu vários balões que não lhe deram o resultado esperado. Com o Nº9 fez inúmeros passeios sobre Paris, inclusive descendo na porta do prédio onde ficava o seu apartamento, na Champs-Elysées - Santos=Dumont também foi um homem muito chique e refinado. Com este balão, quase todas as tardes voava até o Bois de Boulogne e conta que foi o seu “filho” mais popular, só ultrapassado pela “Demoiselle”. Mas após todos estes feitos, Santos=Dumont estava virando motivo de piada, ou como ele diz, chalaça. Falavam os maliciosos: “O senhor não faz nada? Está sempre fechado em seu quarto, dormindo?”. É aquilo: ou você mata uma hidra de lerna por dia ou jamais será deixado em paz!


Resolveu tirar umas férias no Brasil. Nada melhor que o calor dos trópicos para desanuviar a mente. Visitou o Rio, São Paulo, Minas e alguns estados do norte. Seria tudo sol e felicidade, se não houvesse uma tristeza: a ausência do pai. Sim, aquele que tanto lhe ajudara e proporcionara todos os meios para que ele, seu amado filho, realizasse o seu sonho, não estava mais para assistir ao seu sucesso de camarote. Aquilo lhe apunhalava! Conta, humilde, que tudo que a vida lhe havia dado devia tão e unicamente ao seu querido pai.

Então “dormiu” mais 3 anos e, em julho de 1906, nosso melancólico adormecido despertou numa fantástica manhã de verão parisiense. Estava pleno de energia, queria voar e mostrar a todos do que ainda era capaz! Apresentou-se no campo de Bagatelle com o seu aparelho grande e biplano, onde dependurou o seu último balão, o Nº14, por isso batizado de 14-Bis. Com essa máquina híbrida, fez várias experiências, habituando-se com as manobras e a pilotagem do aeroplano, foi quando se desfez do balão. Era o toque do gênio! Ensaiou vários vôos, corrigiu os problemas técnicos que observou e em 23 de outubro de 1906, perante a Comissão Científica do Aero Club e de imensa multidão, fez o célebre vôo que confirmou totalmente a possibilidade do homem voar! Paris ficou em festa, todos foram dispensados do trabalho para comemorar na Champs-Elysées! Tudo bem, tudo bem, não rolou dispensa…

Alberto conta que esta experiência, e a de 12 de julho de 1901, foram as que mais felicidade lhe proporcionaram na vida. Orgulhoso, ele conta que importantes revistas e jornais de todo o mundo consideraram o seu vôo com o 14-Bis um acontecimento histórico. Como fariam diferente?

Passaram-se 2 anos e então vieram os "Irmãos Wright Cara-de-Pau" contando vantagem, dizendo que tinham voado e atingido os céus muito antes, mas que preferiram fazer tudo às escondidas… Com revolta contida, Santos=Dumont disse que jamais tiraria o mérito dos "Irmãos", a quem ele devotava grande admiração, entretanto, o que Edison diria se depois de apresentar a lâmpada elétrica outro inventor aparecesse com uma melhor dizendo que a tinha inventado antes? Alberto enche os pequenos pulmões de ar, ele tinha apenas 1m60, e desabafa:

“A quem a humanidade deve a navegação aérea pelo mais pesado que o ar? Às experiências escondidas dos irmãos Wright ou a mim que fiz todas as demonstrações diante de comissões científicas e em plena luz do sol e que todos qualificaram como o "Minuto Memorável na História da Aviação?”


Pois é, nós, os franceses e algumas pessoas sérias espalhadas pelo mundo sabemos, mas a “história” que se conta, invariavelmente, é parcial…

A vida de Alberto Santos=Dumont foi bem maior que isso e ele merece todo o nosso respeito por todas as escolhas que fez. Fico feliz em imaginar que 100 anos atrás ele estava aqui, fazendo Paris explodir de tanta euforia por ser a primeira cidade do mundo a ver um homem voar de verdade. Que o seu espírito perseverante, desbravador, visionário e aventureiro permaneça sempre entre nós!


*Escrito no Brasil, em 1918, o livro “O Que Eu Vi, O Que Nós Veremos”, é um relato de todos os seus feitos, pensamentos, desabafos, visões sobre o futuro (que se confirmaram), reprodução de matérias de jornais e revistas francesas, fotos de seus dirigíveis, da medalha da Princesa. Está disponível no site: http://www.cabangu.com.br/pai_da_aviacao