paris à go-go

crônicas sobre Paris e de sua ululante gente francesa

dimanche, juillet 09, 2006

O Zé Perry e o Pequeno Príncipe

Há muitos anos, em 1900, nascia o terceiro herdeiro de uma aristocrática família francesa. Sim, é bem verdade, a família estava à beira da falência, mas isso não faz muita diferença quando se é aristocrata de sangue. Foi neste berço meio decadente, mas ainda rico, que Antoine Jean Baptiste Marie Roger de Saint-Exupéry chorou pela primeira vez e posso jurar que ninguém, absolutamente ninguém, desconfiava que aquele bebê rosado como um leitãozinho um dia seria um dos escritores mais consagrados da literatura universal e um piloto pioneiro que desbravaria importantes rotas de navegação aérea. Também não desconfiavam que ele atravessaria o oceano Atlântico e quando aterrissasse nas areias claras da ilha de Florianopólis ele seria simplesmente o “Zé Perry”.

Infinitamente famoso após a sua morte, o autor do livro “O Pequeno Príncipe” (que comemora 60 anos de seu lançamento na França), foi um escritor de grande sensibilidade, mas acima de tudo um humanista destemido que viveu experiências espetaculares, praticamente um Barão de Munchausen. No seu caso ele bem que poderia ser chamado de Visconde de Saint-Exupéry, já que o pai ostentava o título. Mas para falar de suas aventuras é preciso saber que só o fato de pilotar um avião até a metade do século passado era coisa para bons, poucos, e muito loucos! Naquelas insensatas décadas de 20 e 30 os aviões permaneciam por muito tempo rentes ao solo e os vôos eram alçados na dependência exclusiva da habilidade dos pilotos - voar era extremamente perigoso e instintivo! Não existiam radares nem os sofisticados aparelhos que poderiam guiar os pilotos com segurança, como é atualmente.

Apaixonado ao extremo por aviões desde criancinha quando se hospedou no castelo da tia, o seu sonho dourado era fazer parte da Armada Francesa. Ao lado do château “Saint-Maurice-de-Remens” havia um pequeno campo de aviação que Saint-Exupéry visitava todos os dias para observar as aeronaves e conversar com pilotos e mecânicos. Foi lá que fez o seu primeiro vôo, aos 12 anos, e a vontade de seguir a carreira se acentuou intensamente - ou ele seria um piloto ou não seria nada! Mas aos 19 anos foi reprovado do teste da Escola Militar e a decepção fulminante quase o derrubou - passou 2 anos sem eira nem beira tendo a mãe como único consolo. E por falar na mãe de Saint-Exupéry, Marie de Fonscolombe ocupou um lugar fundamental em sua vida. A grande sensibilidade do filho para a arte foi inspirada por ela, uma mulher cultivada, amante das artes. Acostumou os filhos desde o primeiro dente de leite a apreciarem e a compreenderem a beleza de toda manifestação artística. Para Saint-Exupéry a mãe sempre representou uma imagem de paz, de serenidade, de apoio incondicional durante os piores momentos por que passou.



Mas eis que enquanto ele escrevia mais uma das dezenas de cartas endereçadas a mãe, recebe o chamado para cumprir o serviço militar. Apesar do dia parcialmente nublado Saint-Exupéry corre alistar-se feliz da vida no Regimento de Aviação de Caças, mas para a sua surpresa é designado para trabalhos em terra… outra desilusão! Pensou em morrer, pensou em se matar, mas conversando com a mãe, a sábia mãe, teve a idéia de contratar um professor particular. Após 9 meses de aulas dia e noite nosso obstinado herói consegue o brevê de piloto civil. Finalmente aquele que se tornaria um piloto audacioso e amante incondicional do perigo conseguia do exército o diploma de piloto de guerra!

Mas nem tudo eram clematites na vida de Saint-Exupéry: servindo a este mesmo exército que ele tanto batalhou para entrar sofre um grave acidente e é dispensado. Entristecido vai tentar a carreira de piloto civil numa empresa de correios. Logo ganha o apelido de “Saint-Ex” e nosso ousado piloto realiza um importantíssimo feito para a aviação mundial mapeando a rota Toulouse-Dakar-Buenos Aires. E se não bastasse isto, Saint-Ex também estabelece as primeiras rotas aéreas entre o norte do Brasil, Buenos Aires e sul do Chile. Foi nesta fase criativa que ele conheceu a praia de Campeche, o primeiro aeroporto de Santa Catarina onde aterrissou e decolou entre 1926-31, onde ele virou o Zé Perry. Os pescadores achavam muito complicado falar Saint Exupéry, então resolveram com o bom e famoso Zé. Nessas paradas ele e outros pilotos descansavam por dias na praia catarinense enquanto os aviões eram revisados e reabastecidos. Zé Perry tinha um alojamento em Campeche e ficou amigo dos pescadores com quem dividia cigarros trazidos da Europa, aprendeu a pescar e a preparar os peixes da ilha. Não há notícia de que frequentava os bailes para paquerar as catarinenses, mas sabe-se que tinha loucura por biju.



Mas quando Zé Perry não estava comendo biju o que ele gostava mesmo era de correr perigo: resgatava aviões e pilotos nos lugares mais improváveis (deserto do Saara e Cordilheira dos Andes), tentava quebrar recordes de tempo de vôo, ele fazia e acontecia. Passar dias sem comida e água, sofrer alucinações no deserto, viver como os beduínos, sair de um coma profundo, ele passou por tudo isso. Só se sentia vivo e bem consigo mesmo enquanto voava e se houvesse risco era o paraíso na Terra! Voar era um momento de meditação em que Saint-Ex filosofava sobre a solidão, a amizade, a liberdade, o significado da vida, os valores humanos… Reflexões que posteriormente ganhariam as páginas de jornais, revistas e de seus vários livros: “O Aviador” (1926), “Correio do Sul” (1929), “Vôo Noturno” (1931), “Terra de Homens” (1938) e “Piloto de Guerra” (1942).

Durante a 2ª Guerra Mundial o biju escasseou e Saint-Exupéry se colocou novamente à disposição da querida Força Aérea Francesa. Sob a patente de capitão ele foi enviado para Toulouse, mas logo a França assinou a rendição para a Alemanha e ele parte desconsolado para o exílio nos Estados Unidos, onde escreveria e ilustraria “O Pequeno Príncipe” (1943) - best-seller que se tornou leitura obrigatória para qualquer Miss Universo que se prezasse. A inspiração para o cultuado livro surgiu depois de ele sofrer um acidente no deserto da Líbia e passar por uma experiência muito particular. Este “acidente” se converteu no livro francês mais vendido no mundo.

Enfim, quando os Estados Unidos decidem entrar na guerra, Saint-Exupéry se alista mais que depressa sob o comando dos americanos, mas os seus 40 anos mais alguns problemas físicos lhe dão o inaceitável cartão vermelho. O fato era que Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger de Saint-Exupéry era teimoso feito um jumento de pedigree e queria porque queria pilotar um dos lendários aviões de guerra Lightning P-38! Não houve cristo que tirasse isso da sua cabeça dura! Fez uso de todas as suas influências aristocráticas até conseguir levantar vôo em sua primeira missão. Deu no que deu... o seu corpo e o tão falado Lightning P-38 nunca foram encontrados. O que se sabe é que o nosso Saint-Ex simplesmente desapareceu por completo numa ensolarada manhã do dia 31 de julho de 1944. Era a sua oitava missão e ele sobrevoava a Baía dos Anjos no sul da França, estava em casa novamente.