paris à go-go

crônicas sobre Paris e de sua ululante gente francesa

mercredi, janvier 24, 2007

"A Mensagem"


A porta que alguém abriu
A porta que alguém fechou
A cadeira em que alguém se sentou
O gato que alguém acariciou
A fruta que alguém mordeu
A carta que alguém leu
A cadeira que alguém virou
A porta que alguém abriu
O caminho que alguém encurtou mais uma vez
O bosque que alguém atravessou
O riacho onde alguém se jogou
O hospital onde alguém morreu.

Jacques Prévert
"Paroles" - 1949

samedi, janvier 13, 2007

Francis, o estripador de Paris

Até o século XIX, monges inocentes como pombas bem nutridas, faziam a sesta diária no carinho das sombras de um singelo moinho. Contruído no século XII, pelos frades de St Jean de Dieu, o moinho da Charité pertence desde 1826 ao cemitério de Montparnasse.

Naquela época, quando as trevas ameaçavam cair, os monges se recolhiam alvoroçados para o mosteiro. Enquanto faziam suas orações, corpos torturados de condenados à morte eram lançados no “campo de nabos” (“champ de navets”, gíria da época para vala coletiva), terreno próximo ao moinho. Estes corpos podiam ser reclamados tanto pelas respectivas famílias ou mesmo por estudantes de medicina que iriam dissecá-los. Mas entre 1847-49, uma outra forma de dissecação tomou conta dos cemitérios de Paris.

A primeira violação aconteceu em meados de 1847, em Tours. A mulher do coveiro, que jogava migalhas aos corvos após o jantar, jurou ter visto correndo entre a escuridão o possível criminoso. Na sua visão, o suspeito vestia uniforme militar e era um homem jovem. A mulher do coveiro, que ele não nos leia, passou noites e noites excitada com esta aparição, a farda lhe era um fetiche.

Semanas depois no Père-Lachaise, o cemitério das estrelas, mais profanações foram cometidas. Lá, não se encontrou vivalma para acusar ou mesmo para protagonizar sonhos obscenos, para tristeza da mulher do coveiro. Porém, numa noite abafada de lua crescente, o guarda noturno recebeu uma visita de última hora: aconchegado numa vala recém-aberta, um homem jovem trajando uniforme militar ressonava profundamente. A mulher do coveiro bateu palminhas.

Levado preso, o sargento Francis Bertrand, de 25 anos, respondeu tranquilamente ao longo interrogatório a que foi submetido, seu semblante era plácido. Fumando elegantemente, Francis repetia à exaustão que estava no cemitério para um encontro amoroso com uma bela mulher. Por que não um pouco de extravagância para escapar da mesmice dos bordéis de Paris? Mas surpreendido pelo sono e pelo “cano” da fogosa, Francis escorregou na vala e teve o azar de ter sido encontrado pelo vigia. Sem nenhuma prova para mantê-lo preso, os guardas o levaram de volta à caserna, onde encontrava o seu regimento.

Por alguma razão, após este ocorrido, as profanações cessaram em Père-Lachaise, mas começaram em Ivry. A mulher do coveiro tinha sonhos inflamados. Então uma terrível perda acometeu a felicidade de um lar: uma enfermidade fulminante levou uma menina de 7 anos e a petite foi colocada num confortável ataúde forrado de veludo rosa. Seus pais a vestiram com o vestido mais gracioso, colocaram fitas de seda em seus cabelos dourados e a seu lado acomodaram as bonecas preferidas. Na noite seguinte, o sepulcro e o diminuto caixão estavam abertos! O lindo vestido, ricamente bordado, se resumia à farrapos e o seu corpinho estava inteiramente mutilado. Mais: a mão sacrílega que não havia conhecido a compaixão, arrancara o coração da criança! As bonecas não foram tocadas.

Em seguida foi a vez do cemitério de Montparnasse. Na precisa data de 30/07/1848 e nas semanas seguintes, vários cadáveres de mulheres foram tirados de seus túmulos sagrados e encontrados pelos guardas do cemitério. Os pedaços dos corpos eram abandonados em passagens desertas. Os guardas estavam atônitos e se sentiam impotentes. Foi então que decidiram fazer uma armadilha para capturar o estripador de tumbas: um fuzil foi habilmente colocado sobre uma sepultura e coberto por coroas de flores. A embocadura foi direcionada para o muro de cerca de 3 metros e um fio de ferro, amarrado ao gatilho, acionaria a arma na primeira tentativa de profanação. Montaram guarda.

Então confiou-se ao tempo, vários meses foram contados, as esperanças morrendo... A mulher do coveiro fez promessas impossíveis. Finalmente, quando tudo parecia ter sido em vão, em 15/03/1849, perto da meia-noite, a explosão se fez ouvir como um golpe de paixão. Os guardas correram, quase atropelando uns aos outros, e avistaram um homem, ainda dentro do cemitério, mas que tentava vencer o muro. As lanternas são apalpadas com ansiedade, as cruzes do cemitério são tomadas como amuletos, os guardas exploram os arredores toca a toca. Encontram sangue fresco, trapos de roupas militares e marcas de botina. A mulher do coveiro consegue um fiapo da farda. Um relatório acalorado é encaminhado à polícia parisiense.

4 dias depois, mais condenados à morte são fuzilados. O coveiro, que preparava as valas como uma arrumadeira em hotel de luxo, ouve a seguinte história de 2 soldados do 74ºBatalhão: dias antes, um sargento do regimento deles havia aparecido no meio da madrugada, em Val-de-Grâce, bastante machucado. Ele tinha sido baleado várias vezes, mas dava vagas explicações sobre o terrível acidente que havia sido vítima. Assustado e ao mesmo tempo eufórico pela descoberta, o coveiro larga o batente e corre avisar a polícia. Não diz nada à mulher. Ela alisava o seu fiapo de farda.

A polícia segue para Val-de-Grâce à galope e encontra o sargento Francis Bertrand crivado de balas. Uma sindicância é aberta e o devorador de corações dá o serviço completo: conta com orgulho macabro ter profanado, em uma única e boa noite, entre 10 e 15 sepulcros. Apruma o uniforme e confessa com ardor que alcançava enorme prazer em arrancar os corações e mastigar as entranhas daqueles belos cadáveres. Deliciava-se em mutilar as mulheres e espalhar os seus pedaços pela terra, como sementes que um dia vingariam novamente formosas. A mulher do coveiro chorou. Não pelas mulheres dilaceradas, mas pela paixão que Francis possuiu por elas.

Julgado, o sargento recebeu uma pena de prisão mínima (3 meses a 1 ano), mais uma multa entre 500 e 1800 francos por ter violado as sepulturas. Dizem que ele cumpriu a pena, mas depois disso o seu paradeiro foi para sempre ignorado. A mulher do coveiro tinha mais que um fiapo da sua farda, o coveiro confirmou o fato antes de deixá-la.

O moinho da Charité não serviu mais para a sesta dos monges, mas continua a acenar para quem passa no Boulevard Edgar Quinet. Ele sabe da mulher do coveiro e de tudo o mais.